Minha tristeza de estar pelo último dia em Buenos Aires parecia se dissipar quando acordei e o feriado começava com um belo Sol. Enquanto alguns esperavam o agente do censo 2010, que na Argentina é feito em um só dia, outros faziam seu mate e passeavam rapidamente com o cachorro.
Eu e meu cicerone nos preparávamos para tomar um bom café e sair para caminhar, olhar para mais uma ínfima parte de um infinito universo porteño que a cada dia me deixava mais interrogado sobre a “natureza” dos hermanos quanto ao tratamento do sujeito próximo. A simpatia com que senhoras nos agradeciam na rua ao dar licenca, o respeito de alguns motoristas na hora de parar na faixa de segurança, e a rodada inteira do Apertura passada na TV aberta me diziam que os tempos de crise estavam sendo transformados em um tempo de expectativas muito menos cinzas que o inverno a beira do rio da prata, e que muito da fama dos hermanos passava pelas nossas subjetividades e nossas posturas coletivas. (que novidade, saber que a identidade e alteridade trabalham com um registro muito mais dialógico que discursivo). Ao mesmo tempo, por outro lado, algumas inchas, principalmente a de um time de imbecis que todos se iludem ao chamar de clube popular, jogavam objetos no campo gritando cânticos xenófonbos.
Os ares dessa latinidade andina e pouco conhecida pelas bandas da Recoleta, ou até mesmo pelas de Avellaneda, tomavam voz pelos pedintes na rua e por pessoas mexendo nas lixeiras. Porém, como muitos jornais afirmavam, dos mais peronistas ao próprio Clarin, a Argentina parecia estar mudando. Minha impressão, como turista, foi tomada por uma áurea estética muito diferente do Brasil. Uma linha de metrô com mais de 80 anos, prédios em ruínas ou restaurados mais velhos que Porto Alegre, me faziam crer que algo acontecia, e que os ares provincianos conseguiam manter um certo equilíbrio que o cosmopolitismo de uma cidade com o tamanho de Buenos Aires e o provincianismo de uma ex-colônia espanhola exigia.
Por las calles...
Ao ligar a TV do dia 27 de outubro, comecei a me sentir parte da história fantástica, personalista, apaixonada, contraditória, factual e ideológica que os habitantes da Argentina, de maneira geral, viviam desde seus pequenos passos e cânticos de apoio nos estádios. A voz coletiva na Argentina tem poder, e ameaça até mesmo os poderosos que contam com ela. O próprio Peronismo, que não é nenhuma unanimidade no país, usou de maneira quase ditatorial a força para calar essa voz multiplicada. Se há inchas que cantam pela expulsão de Bolivianos e Peruanos da Argentina, há outras, muito próximas, que cantam os dias de “glória” em que o estádio foi tomado para que o clube não decretasse falência, e que vai para o estádio com chapéus de operários, cantando “así soy jo, uma hinchada diferente”.
O que estava escrito no aparelho televisor, nas linhas abaixo da fala de um jornalista engravatado era claro, porém nada compreensível: “Se murió Kichner”. No meio de manifestações de apoio a Cristina e poucas buzinas na rua, a calma do Censo agora já havia se transformado em um silêncio de luto. O cinza de alguns prédios já tinha uma força maior que o azul tímido do céu sem nuvens, e a minha sensibilidade já se efacelara há muito tempo.
Não há outra saida. Vamos viver as ruas, sentir o que acontece, e o que está acontecendo! Antes de disso, recebemo o recenseador, e respondemos a rapidas perguntas, noa sentindo cada vez mais parte da escrita da história porteña. Ao caminhar pela Entre Ríos fechada com a Polícia Federal cercando as entradas, e chegar a frente do Congresso, onde todos os canais de Tv montavam seus equipamentos megatrônicos, me tomei por uma sensação de inexistência total. Toda minha individualidade parecia desaparecer e esmaecer diante do imponente prédio, da inevitabilidade do tempo vivdo em rupturas, e da incerteza que as faces e as conversas das pessoas traziam a tona para o asfalto cada vez mais negro em frente ao cinza do Congresso.
Porém, como todos parecem saber, o que acontece em Buenos Aires, e o que pode acontecer, fervilha mesmo é no tom rosa da casa em frente a Plaza de Mayo. Se há como entender essa voz coletiva, essa mobilização do povo na Argentina, é preciso começar por alí. O clima, como parecia, se confundia entre apoio e orgulho peronista, que se expressava em cânticos e hinos trabalhistas por pessoas de diferentes idades, cores, descendências e inchas. De outro lado, o luto era evidente nas bandeiras com a faixa preta sobre o celeste e branco a frente do sindicato Metropolitano de Técnicos e Profissionais Peronistas, no olhar amargurado e inseguro de mães com panos brancos na cabeça, e em pessoas às lagrimas comprando flores para homenagear o ex-presidente.
Em frente a Casa Rosada, trapos, bilhetes, bandeiras, e rosas brancas. A cada minuto a multidão de multiplicava e aumentava. Repórteres do Canal 26 e da Tv Pública também se empurravam atrás de testemunhos tristes e boas imagens que seriam re-transmitidas para quem ainda esperava o censo antes de ir para rua chorar ou até mesmo comemorar. Aos poucos, vi a importância de Kichner para seus seguidores e para seus inimigos. Dentre muitos escritos, os que impressionavam eram os que diziam “Nestor, Eva e Perón juntos no céu, força Cristina”, ou então, “Mais do que nunca, agora são todos com Cristina”. Todas as contradições possíveis da política e do cotidiano argentino se anulavam e a tristeza se metamorfoseava em uma esperança de que todos se tornariam peronistas, ou começariam a aceitar o Partido Judicialista como uma das únicas saídas para o desenvolvimento do país.
O grande problema desta paixão toda, com certeza, é essa visão limitada e a diminuição do senso crítico com relação ao seu próprio rumo. No entanto, na comparação com nossa política tupiniquim, tudo la parece ser mais “honesto”, apaixonante, e vivido em toda sua potência. O que mais impressionou, no entanto, foi o que muitos “pensadores” e “teóricos” falavam na TV a noite, mas que pude perceber a tarde: sendo bom ou não, os jovens argentinos voltaram a se preocupar e participar da política. Os direitos humanos tinham outro espaço, e havia também um apoio massivo de imigrantes peruanos e bolivianos a Kichner. Com certeza algo havia mudado, e com certeza os rumos eram mais que incertos. – eram sinuosos!
Na tv, o debate era sobre o futuro incerto da política argentina, o poder na mão de um grande sindicalista, e a tristeza que se transformava em luto. A única parte ruim foi ter que ir embora. Com certeza acompanhar a política e os caminhos do “poder” porteño pode nos evocar e nos trazer de volta a paixão de viver o cotidiano e a vida micro-social de uma forma muito mais vívida e menos burocrática.
Como se escreve e se inscreve a história na memória de uma população? A pergunta pode ser respondida de muitas formas, mas é interessante pensar como os fatos cotidianos, a experiência das pessoas para com esses acontecimentos fala sobre o que poderíamos chamar de “espírito das coisas”.