Eu realmente não gosto, não costumo, e nem tenho vontade de escrever sobre futebol. Sinceramente, acho que essa falta de vontade que afeta meu lado “torcedor” é apenas um reflexo de algo a que todos estamos sujeitos: de que uma hora ou outra, a pessoa acaba cansando de agüentar tanta incoerência e falta de compromisso para com o próximo, que acaba tendo que escolher onde vai podar sua vida social, para viver o mínimo possível ao lado de metafísicas desta magnitude. Não falo de ética, porque isso estaria maximizando e dando um estatuto grandioso demais (e não merecedor) às discussões em mesas-de-bar, mesas redondas, quadradas, avaliações pseudo-táticas e comentários recheados de esdrúxulas argumentações pouco retóricas e quase nada estruturadas que escuto todos os dias, mesmo querendo me afastar disso. Eu to falando é simplesmente de algo tão simples, e nem por isso menos complexo que isso: que cidade é essa que queremos viver?
O que me comove ao escrever sobre futebol nunca foi, e não é, a competição ou o “gremismo” versus “coloradismos”. Acho tudo isso de uma falta de razoabilidade incrível, uma perfeita perda de tempo misturada à efemeridade da vida complexa, que não dá ao esporte, seja ele qual for, o brilho que ele deveria ter. São estes delírios de torcedores flamejantes, cobertos com o mais puro manto da excitação viril (não é machismo, só uma leve referência ao mito de elevação e aos símbolos fálicos, que em nada tem a ver somente com o maniqueísmo de gênero entre homens e mulheres, vide Gilbert Durand, e As estruturas antropológicas do Imaginário), que fazem pessoas brigarem, se esfaquearem, e se preocuparem tanto com a vida de pessoas que talvez nem mereçam a idolatria que são donas. É essa mesma passionalidade que às vezes coloca a disputa sobre a construção de um estádio em um patamar sem explicações, sem se dar conta de que a cidade sofre cada vez mais com especulação imobiliária e todas suas conseqüências. Apaga a necessidade que temos de construir uma cidade mais sustentável, igualitária e justa. Quer saber mais? Tenta descobrir o que está acontecendo com moradores do morro Santa Teresa, com famílias da vila Dique, e tantas outras que vão sentir o impacto dessa copa durar por muito mais tempo do que um sinal fechado ou um dia de calor escaldante. Se o leitor quer realmente ouvir de alguém que entende do assunto, procure saber do trabalho de Anelise Gutterres, doutoranda do PPGAS, ela sim tem competência pra falar disso melhor do que eu .
O esporte, que é aquilo que acho que sou minimamente capaz de falar, na sua eterna in-civilidade abalizada pela etérea vontade de ganhar, é o que, incoerentemente, me comove. Eu disse, e repito, há incoerências inevitáveis, saudáveis ou não, e isso é fato, imperativo, é a força motriz do cotidiano. Independentemente do estilo, da prática ou modalidade, não conheço ainda nenhum esporte que não coloque em jogo os problemas ainda insolúveis entre individuo e sociedade, natureza e cultura, regras e estratégias contra táticas e astúcias, história e sociedade, práxis e cultura. É lindo, fantástico, e gratificante saber que o esporte elimina todas estas certezas e todos esses antagonismos que parecem ser de uma forma ou outra fundamentais para existência humana. Pode ser um instrumento de mobilização social incrível, tanto para coisas “boas” quanto para “ruins”. Pode tirar pessoas de situações deploráveis, pode mobilizar uma comunidade inteira para um jogo de futebol de várzea, mas pode também submeter pessoas a uma modificação brutal nos seus corpos buscando resultados, e pode distanciar, ampliar, e contribuir para o aumento da desigualdade social. Acima de tudo, o esporte é objeto extremamente interessante para explicar, entender ou compreender a ação humana.
Exemplos não faltam. Basta ler as notas de Wacquant sobre seu aprendizado enquanto boxeador, as especulações de Sahlins sobre a inacreditável “World Series” ganha pelos Mets, DaMatta falando sobre o futebol e a identidade nacional, Leite Lopes narrando o surgimento dos grandes clubes a partir de sociabilidades em fábricas e ao mesmo tempo expondo conflitos de classe e raça no Brasil. Não é de hoje que o esporte fala sobre a existência do ser no mundo, e nem há data para saturação, seja nos sítios do mais genioso blogueiro ou nas páginas encarecidas de editoras, escritas pelo mais genial pensador.
E foi por isso que comecei a escrever esta pequena nota. Não para justificar minha incoerência e dizer que gostaria de estar no estádio no próximo Domingo, ou para dizer que há poucas coisas que gosto tanto quanto jogar uma “pelada” (disso não preciso), mas sim porque me senti imensamente provocado pela grande movimentação que se faz em torno de uma figura paradigmática para a vida de todo “futeboleiro” de Porto Alegre: Ronaldinho Gaúcho. Isso, devido a uma sinapse de ligações inexplicáveis (como quase todas que acontecem na minha cabeça) me fez ficar deveras impressionado e assustado com a falta de mobilidade e a cegueira que os “assuntos da Copa” estão causando ao país.
Vejam como é fantástico e amedrontador ver a mobilização das pessoas com relação ao caso do “pilantra dentuço”. Vejam, também, que desde que ele saiu do Grêmio, os mesmos dirigentes cometem os mesmos erros, dão as mesmas desculpas, e o clube continua, não surpreendentemente, na mesma. Veja também, você, torcedor que quer queimar o complexo habitacional Assis Moreira, e que compartilha a imagem de uma “piscina copeira” na internet, continua, provavelmente, tendo os mesmo problemas com seus amigos, com seus amantes, com seus chefes, com sua saúde, independentemente do que tenha acontecido nas salas de reunião entre o representante e irmão do jogador e os dirigentes do Grêmio.
Agora, veja também, como você talvez nem tenha se dado conta de que o estatuto do torcedor quer ser abolido pela FIFA, em prol do lucro gerado por esse futebol espetáculo que ajudamos a construir, e que, de maneira estúpida, esse mesmo estatuto está sendo usado para banir a entrada de faixas com os dizeres “pilantra” no estádio Domingo. Ainda mais assustador, é ver que bilhões e bilhões de reais estão sendo destinados e direcionados, sem garantia de retorno, a obras muitas vezes fantasmas em todas grandes cidades brasileiras.
Parece chato, retrógrado, e pouco sensível, mas não há maneira de aceitar tudo que vejo, de longe, acontecer em Porto Alegre. Algum dia ainda espero alguém me dar a boa notícia de que a previsão para média de temperatura em janeiro e fevereiro é de 23º….