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Talvez porque…

Talvez porque eu não saiba mais se quero mesmo ir a todos os lugares do mundo
Talvez porque eu não saiba mais se quero continuar vagando sozinho pelos cantos do meu pequeno mundo
Talvez porque eu não queira mais que a inspiração para poesias venha só em dias tristes
Talvez porque eu queira agora só escrever contos e mentiras que jamais serão compreendidas

Talvez porque eu não queira mais realizar entrevistas e me curvar diante de um computador
Talvez porque eu precise sentir, através das unhas, mais dor
Talvez porque quando eu ficar velho e sentar em um banco na rua, possa tomar um mate bem acompanhado
Talvez porque eu goste mesmo é de nunca ter certeza de como será o futuro

Talvez porque eu esteja contaminado por fogo
Talvez porque eu esteja cansado da terra
Talvez porque eu não conseguirei levar comigo verdade alguma
Talvez porque eu não sei se levarei eu mesmo

Deve ser por tudo isso que talvez – mas quase que com certeza –
que eu saiba que ter certezas é realmente tedioso
E deve ser por isso também que sinto
que sentir medo de sentir um pouco de medo é uma sensação realmente prazerosa….


Será preciso?

Eu preciso de tempo. Preciso de um tempo para ter nada pra fazer. Preciso de tempo para beijar alguém em um café, num dia nublado qualquer. Preciso de mais tempo com amigos e com parentes. Preciso dar um jeito de não precisar mais arrumar os dentes. Preciso escrever letras e compor canções. Preciso de tempo, espaço e gente para tocar essas canções. Preciso continuar evitando filhos, me aproximando de sobrinhos e primos, e ser muito, mas muito mais irmão.

Preciso descobrir como ser mais atencioso e menos preguiçoso. Preciso de foco, e de força para não ter dinheiro. Não quero ter dinheiro, só o necessário para chocolates, livros, discos e filmes. Preciso que o dia tenha algumas horas a mais, mas para dormir, e não para estar a frente dos outros.

Não preciso de guarda-chuvas, nem uma memória melhor. Não sei quanto tempo demorará para minha cama não encharcar quando chove, e quando não terei mais que fingir que quero estar do lado de algumas pessoas.

Quero estar do lado dos outros, de pessoas legais e chatas também, para ver quanto as outras pessoas que não acho nada também são muito legais.

Quero enfim, sentir mais as artes. Quero estar do lado de poesias e poetas amadores. Loucos de cara, ouvindo que as coisas sempre estão boas, e que mesmo assim ainda podem melhorar. Mas o que preciso mesmo agora, é dormir sem me preocupar com o que preciso, e sim aprender a valorizar o que tenho hoje, o que sei que não posso perder e que terei que ter, por necessidade sentimental e prática, para sempre.

O ser pleno do repouso e do devaneio está no lado B desse disco, que teima em não terminar com o lado A.


Me guardando pra quando o carnaval passar…

Antes, de fato, a idéia era deixar Babylon nos levar, ir até o final da aventura do alto da montanha, e convencer o Sol de que um dia jamais deixaríamos de estar ali. Antes, na verdade, não tínhamos nenhuma verdade, plano ou circunstância que limitasse nossas trocas de carinho e nossas íntimas desculpas para nunca mais se levantar da cama.

De caso feito e pouco pensado, compramos as mais variadas especiarias.  Tentamos provar do manjericão com mamão e do maracujá com cardamomo. Misturar a massala com o olhar de acordar, e ir dormir com gosto de halawi e pitadas de mostarda de dijon. Provando de todos os gostos e trocando os mais prazerosos fluidos, acendemos faróis abandonados e praticamos yoga enquanto chovia em alguma praia deserta. Destruímos e fomos moídos por trilhas tortuosas de pedras e espinhos, insetos tímidos e anfíbios simpáticos. Visitamos as ruínas do Partenon, protestamos contra qualquer coisa na Plaza de Mayo, cruzamos o estreito de Gibraltar e jogamos molotov no muro da Cisjordânia. Nas minhas mais sinceras desculpas, queria estar de mãos dadas em Madri, ou de gorro de lã no Nepal.

Também escutamos cada novo acorde cubano, cada batida turca e novas letras mediterrâneas, sem se preocupar com afinação, afinidade ou idade. Fizemos das mais diversas tolices, e rimos de todos os dias em que o Sol teimava em desafiar nossa disposição para permanecer assim, junto, íntimo e explodindo relicários.

Hoje, a nota final da cuíca não sustenta tamanho sentimento, não suporta a gigantesca e enorme complexidade que “de repente, não mais que de repente, fez do amigo próximo o distante e da vida uma aventura errante”. Hoje somos apenas dois habitués da mesma cidade e do mesmo calor, esperando para ter um carnaval mais digno e nobre que o Natal, uma ceia mais leve e carinhosa que o eterno pressentimento de que o ano que se anuncia não será tão duro como antes parecia.

A dureza financeira, sentimental e emocional me obriga agora a flutuar na neblina e congelar o tempo como se nada tivesse ocorrido antes. Parecendo o devaneio de quem vive sempre ralo e como um bom vivant, mesmo sem iluminar a vida de ninguém e sem produzir fotolitos de exposição, estou aos poucos acordando e me dando conta de que a simplicidade de todas as coisas está na possibilidade de simplificação das combinações. As receitas mais saborosas e admiráveis são aquelas em que o sentido de combinar está exatamente em simplificar, em que o objetivo de temperar é sempre instigar, e esconder aos poucos um gosto amargo ou acre, uma textura macia e saborosa.

Sobre o tempo e todas as coisas que este gigante insolúvel engole, tenho agora coragem para esquecer que me lembrei de tudo isso, e menos medo de imaginar como seria estar de novo, na rua, perdido e sem nenhum tipo de restrição moral ou física. Tenho a vida, a música, a comida e os dias intermináveis como companheiros. Tenho a saudade, as lembranças e  a intimidade como eterno carma.

Se o carnaval chegar, que chegue de leve, sem muito barulho, e sem muito rancor.